A visão do Ser Supremo na religião Afro Descendente
Os sistemas religiosos "pré - letrados" têm natureza basicamente diversa da experiência vivida pelas grandes religiões universais. Entretanto, em muitas religiões africanas encontram-se frequentemente elaboradas construções abstratas e intensa espiritualidade, como se expressa na ideia de um Deus incriado e criador.
Podemos citar o trecho de uma obra em que lemos: "a noção de justiça divina, por sua vez, pressupõe que existia uma espécie de contrato firmado entre a divindade e os homens. O Ser criador assegura a vida, a terra e tudo o que nela existe, exigindo em troca, submissão e respeito. Assim determinados males são entendidos como recursos com os quais a divindade castiga os homens que romperam, de alguma forma, sua parte no pacto. Prescrições ritualísticas religiosas configuram-se como a única maneira de alcançar o beneplácito divino".
Três características das antigas religiões africanas surgem bem nítidas nessa citação, a saber:
- Deus é criador;
- Existe uma aliança entre Deus e a humanidade;
- A religião leva a uma espiritualidade profunda.
Monoteísmo
Teólogos e pastores prestariam bom serviço às comunidades cristãs se as ajudassem a entender que não há politeísmo na cultura religiosa africana. Os negros vindos da África não eram politeístas.Acreditavam em um Ser supremo, criador de tudo. Que os povos de cultura nagô-yorubá o chamem pelo nome de Olorum (o Inacessível) como os hebreus o denominaram Elohim, que os bantos o chamem de Nzambi (Aquele que diz e faz) ou Kalunga (Aquele que reúne) ou Pamba ou Maúnda como os gregos o denominaram Theos, ou nós o chamamos Deus e os indígenas Tupã, Ele é sempre o Supremo, o inatingível, Senhor do Céu e da Terra.
O Papa Paulo VI afirmou: "A ideia de Deus como causa primeira e última de todas as coisas é o elemento comum importantíssimo na vida espiritual da tradição africana. Esse conceito, percebido mais do que analisado, vivido mais do que pensado, exprime-se de modo bastante variado de cultura a cultura. Na realidade, a presença de Deus penetra na vida africana como a presença de um Ser Superior, pessoal e misterioso".
Os Orixás
Olorum se comunica conosco e se faz presente em nós através dos Orixás que são suas forças vivas. Cada família é consagrada a um Orixá, cada pessoa é protegida por seu Orixá. A proteção é constante, mas durante o culto, o Orixá poderá manifestar-se em alguns de seus filhos ou de suas filhas. São momentos inesquecíveis, de profunda experiência espiritual. Os Orixás não são deuses, mas é por meio deles que Olorum entra em contato com homens e mulheres e nós entramos em comunhão com Ele. Os Orixás têm atribuições e poderes nos diversos setores da criação. Sua função não consiste em trazer favores aos humanos, mas em transmitir-lhes o dinamismo vital que possuem e que comunicam durante o tempo em que se fazem presentes nos terreiros e se manifestam nas pessoas que lhes são consagradas.
"O Orixá é essencialmente orientado para o bem do homem: portanto, ele ama. Como não acreditar num Deus-Amor que cria e envia o Orixá?" Pergunta o Padre François de I'Espinay. "Cresce assim a convicção de que Deus acompanha todos os passos de seus filhos como mãe".
Os Antepassados
Os Orixás nada têm haver com os santos da Igreja católica. Se Santo antônio é Ogum, ou São Jorge em outros lugares, se Yemanjá é Nossa Senhora da Conceição e Santa Bárbara é Yansã, trata-se de expedientes para confundir os brancos, evitando, assim, perseguições. O que mais se assemelha ao culto católico dos santos é o culto dos antepassados. Para nós, africanos, os antepassados morreram, mas não se ausentaram. Permanecem junto de suas famílias, invisíveis, protegendo-as e orientando-as. Com elas se comunicam especialmente através dos sonhos. A morte não é o fim; é a passagem para um novo modo de ser. A resposta de Cristo aos saduceus ilumina essa crença profunda na presença dos antepassados. Deus disse: " Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Ora, Ele não é um Deus de mortos, mas sim de vivos" (Mt 22, 32). Em todo terreiro, por pequeno que seja, há um espaço reservado aos antepassados. A eles se dirige uma saudação no início de cada culto.
Candomblé e suas formas de celebração
Conquanto inacessível para os seres humanos, Deus está muito presente na comunidade e na vida de cada um. A cultura não se preocupa com definições do Ser Supremo. Contenta-se com a certeza de sua presença e de sua ação constante em favor dos humanos. Também não o invoca ordinariamente. Sendo o Inacessível, a Ele se chega através de mediações. O Orixá a que cada um é consagrado, exerce essa função de mediador. Por sua vez, os antepassados são outro sinal da presença e benevolência de Deus. Mas é na celebração que essa presença de Deus torna-se patente na comunidade. Celebração é festa, é alegria, é lazer. Acontece de preferência à noite e se prolonga por horas a fio indo, não raro, até a madrugada. E todos saem felizes. Muitos vão diretamente ao trabalho. Sentem-se até fisicamente descansados graças à experiência espiritual que viveram.
A celebração é cuidadosamente preparada. Não no sentido de escolha de textos ou cânticos. Celebração na cultura religiosa africana, não se compõe de leituras, reflexões e cânticos. A preparação consiste em limpar e adornar o terreiro, preparar as oferendas e deixá-las em condições de serem apresentadas, oferecidas e consumidas. Isto exige bastante trabalho que ocupa homens e mulheres em grande número. juntar os animais para oferecer em sacrifícios e depois oferecê-los como pratos do banquete, tudo isso envolve praticamente toda comunidade. Mas isso também já é revelação de Deus presente. Na alegria dos que preparam a festa e na solidariedade no trabalho, Deus se revela o Deus-Amor.
O lugar da festa é o terreiro. Não temos templos suntuosos como o que Salomão construiu. Nem basílicas, catedrais ou santuários. A festa religiosa se faz em contato com a natureza; basta um terreiro. Melhor se for terreiro verdadeiro de terra batida, sem cimento, sem mosaicos. Assim, ao entrar no terreiro, a pés descalços, os devotos experimentarão o importante contato com a terra. A terra é a mãe que fecunda. Tem axé, tem energia, fertilidade. É comum ao negro e ao índio o respeito para com a terra e os outros elementos da natureza. Esse contato com a natureza prossegue com aspersões de água perfumada com flores e plantas aromáticas, com defumações do ambiente e das pessoas. Faz lembrar a água benta e as incensações do altar católico, dos ministros sagrados aos fiéis.
São preparações necessárias para a festa. Porque a festa mesmo será o encontro com o Orixá através dos quais se realiza a experiencia do encontro com Deus. Todos os presentes são envolvidos, mesmo aqueles que são apenas visitantes e não fazem parte da comunidade e não praticam a religião dos Orixás. A preparação chega ao fim com a oferta que se faz a Exú. Ele é enviado como mensageiro para avisar aos demais Orixás que tudo está preparado para a chegada deles.
As filhas de santo formam um círculo e dão início à dança ritual da qual toda assembléia participa. O tempo se prolonga na dança e no canto. Inesperadamente algum Orixá se manifesta. Toma posse de algum de seus filhos e filhas que logo entra em transe. E a exaltação chega a seu ápice com a empolgação de todos para receber o Orixá. Depois de sua apresentação, caberá ao dirigente da casa determinar o encerramento da festa, com a certeza do dever cumprido. E assim se realiza nossa comunhão com os Orixás e a comunidade do terreiro com Deus e o mundo invisível.
Axé
Inspirado no texto de Dom José Maria Pires
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